(introdução à segunda parte do livro)
Em fevereiro de 2014, tive o grande privilégio de voltar à Guine Bissau para animar um ateliê de Ilustração com um grupo de jovens, desta vez na Casa dos Direitos, com o apoio da mesma. O objectivo era contar em imagens alguns episódios da história da Casa quando essa era ainda a Primeira Esquadra e prisão de Bissau, durante o tempo colonial e a seguir à Independência.
Duvido que a prisão tenha sido alguma vez um sonho para quem a desenhou ou para quem a construiu. Desde a sua primeira função, o tempo passou e felizmente o prédio tornou-se outra coisa: “um espaço de luta pela paz e pelos direitos, por cima do passado de uma prisão (...) E que aí continua, porque há espaços preciosos, que ficam para que a memória nos desafie a continuar”, como escreveu a Fátima Proença na sua carta de despedida ao nosso amigo Pepito.
O meu ritual de cada dia era quase sempre igual: sair do hotel a pé, passar ao lado da muralha da Fortaleza de São José da Amura e chegar à Casa dos Direitos onde havia sempre alguns jovens à minha espera. Com a cabeça cheia de leituras sobre o assunto, não passava ao lado da Amura sem tentar imaginar como foram as lutas entre os Papéis e as tropas portuguesas quando estas puseram o pé pela primeira vez nesse lugar. Nos dias de hoje, a sua função actual é completamente obsoleta e o espaço deveria ser utilizado pela população. Além de ser um assunto para uma banda desenhada, a Fortaleza poderia abrigar uma escola de Belas Artes para todos os talentosos artistas que, na Guiné-Bissau, só precisam dum treino mais profissional para se afirmarem, quer a nível nacional quer internacional.
Para voltar a intimidade do nosso estúdio, descíamos as escadas, quase em apneia posso dizer, tão é azul a cor que cobre as paredes da Casa, como uma reminiscência do oceano presente do outro lado do edifício, ou um eco das histórias do senhor Sadjo Coromuth, que nos contou que às vezes os suspeitos, depois de torturados eram metidos por um canal abaixo “para ir dar ao mar através da corrente de água”.
Para todos nós; Lionel, Taufik, Armando, Arnaldo, Roberto, Kevin, Nando, M’bemba, Dito, Antonio, Alvaro, Fransisco, Ivarildo e o Pombo, meu assistente em 2010 para o projecto “Vozes de Nós”, o prédio nunca foi um “clube de feiticeiros”, mas sim um oásis para a nossa criatividade.
Os quartos, o pátio já não tinham a cara do inferno, mas sim dum lugar fresco onde podíamos escapar por umas horas à fúria do sol e desenhar em toda tranquilidade. Para alguns dos rapazes, foi também a oportunidade para abrir-se ao mundo, utilizando internet.
Cada desenho feito referia-se a imagens do passado, baseado nas entrevistas a alguns dos que passaram pela prisão, mas ao mesmo tempo aproximava esses jovens dedicados a um futuro cada vez mais certo e seguro.
Nos rostos deles, vi muita curiosidade em saber das histórias da prisão, mas nunca vi um pingo de medo. Tal como referiu a Fátima Proença, o lugar ficou como “um espaço precioso para que a memória nos desafie a continuar”. E, esses jovens cheios de sonhos só querem avançar, num lugar onde o medo já não existe.
Ah, se eu fosse um velho general, com os olhos semicerrados, pronto para mais uma vez dar uma cotovelada nos meus vizinhos, para estar certo que eles não vão perturbar-me na minha cadeira de balanço, talvez eu tivesse alguma satisfação em passar um tempinho com todos esses jovens desenhadores. Se eu fosse aquele velho crocodilo, eu também ficaria surpreendido pelo olhar novo do guarda, do preso, do familiar e de todos aqueles que voltaram ao lugar do seu infortúnio e que foram surpreendidos com a alteração feita.
Todas as actividades que acontecem na Casa dos Direitos mostram a todos que nada é definitivo, e que o que era o símbolo amargo da repressão pode agora produzir frutos doces. Não é só a pintura azul e os desenhos todos realizados por esses jovens que mudaram o lugar, são as pessoas que o ocuparam e que, finalmente, deram-lhe uma alma. Eles olham para o mundo com curiosidade e interesse, e não com vontade de morder.
Ah, se eu fosse um velho general, provavelmente, deveria fazer um esforço, um último esforço e concordar que, sim, não podemos apagar o passado, mas também não precisamos de ficar presos nele.
Felizmente, não sou aquele velho general, sou um simples ilustrador que teve a sorte, mais uma vez, de conhecer uns jovens guineenses e de reconhecer o seu talento. E por isso, agradeço!
Cereja no bolo: durante a minha estadia, a Casa dos Direitos organizou, pela primeira vez na Guiné-Bissau, uma exposição com algumas ilustrações minhas do livro de reportagens “Ilhas de Fogo” com texto do Pedro Rosa Mendes, um projecto da iniciativa da ACEP. A Guine Bissau foi o primeiro país africano que conheci e, devo confessar, foi aquele que mais mexeu comigo.
Pela paz, justiça e direitos humanos
Obrigado
Aqui vão os rapazes, todos eles, excelentes desenhadores, que trabalharam comigo (entrevistas/ilustrações e mural). Mais imagens Aqui.
O livro deve
ser publicado me breve com o apoio da ACEP, e da LGDH, Liga Guineense dos
Direitos Humanos.
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